14 de junho de 2011

Recorte epistemológico tipicamente sorocabano

Em visita pelas memórias de meu avô e pelos sebos da cidade rasgada percebi algo instigante: os livros de faroeste de formato de bolso são consumidos (ou lidos) basicamente pela terceira idade -- uso o termo respeitosamente. E esse público tem um sério problema, que é a escassez dos exemplares. Ora, como não se produzem mais títulos desse gênero (se se produzem acabam não chegando por aqui, ou chegam com preços altos e fora do círculo que a demanda freqüenta) os senhores leitores são obrigados a trocá-los nos sebos por outros livrinhos de tiros, poeira e cavalos.
Resultado: para evitar que os livros sejam lidos mais do que uma vez, os leitores fazem pequenas marcas na capa, indicando a leitura daquele livreto. São usadas siglas, assinaturas, símbolos como um triângulo, um ponto depois do nome do autor, etc.
Num primeiro momento, esse fato já é representativo: quando se fala tanto em estímulo à leitura, necessidade de., sobreposição da internet às obras impressas, etc., pode-se reconhecer um verdadeiro nicho de leitura -- um "círculo do livro" informal. Uma espécie de organização velada e sem centro, em que as tramas do oeste americano, dos heróis, dos duelos, das lutas com índios em fortes perdidos numa paisagem meramente imaginária são consumidas em silêncio, povoando sonhos e desejos que o corpo já não poderá mais enfrentar.
Num segundo momento, já numa espécie de sistematização dessa atividade, alguns dos leitores avaliam os livros, para evitar a repetição ou a confusão, dada a variedade de títulos, profusão de autores, estilos de escrita e épocas diferentes: é comum ver as capas com pequenas anotações. Embora tais notas gravitem em torno de conceitos mais jornalísticos (do tipo "bom", "ótimo", "ruim", etc.) sua presença nos coloca numa segunda dimensão desse universo leitor anônimo. Em outras palavras, além da presença desse núcleo secreto de literatura, há uma segunda camada que exerce a crítica literária: potenciais leitores podem valer-se dessas indicações quase que hieroglíficas nas capas e optar por este ou aquele livro.

(Só andando por aí, você, intelectual -- ou não --, vai ver o mundo mostrando os dentes. Os rabiscos aí de cima são uma homenagem ao querido Walter Lacava, leitor das paragens poéticas daqueles livrinhos roídos pelo tempo. Além disso, do objeto de possível interpretação semiótica que está na cara dos caras e todo mundo falando de blablablá.)