28 de fevereiro de 2011

Balada para Artemiro Cruz

Simulo tua morte, nosso possível encontro:
Rejeição e amor fugaz em linhas nos definem.
Incomoda-te essa minha vontade?
Liberdade-rancor-fracasso.

Mentir seria meu ofício, contar histórias:
Interessar-me-ia somente ver meus olhos
Ao observar Catalina. Mas ela passa.
Suas incontáveis memórias não.

Simulo teu leito e tua face partida
Que em cacos me espia – logo sou
Teu esgar às luzes de Hermosillo
E a resistência dos teus.

Por tantos índios caídos e falsos messias,
Finjo hoje ser um yaqui, no centro do mundo.
Esse peso de opostos me derruba:
Consigo? Quase, quase. Só quase.

Sua força mítica e seu nome inútil
Morrerei, morrerá – um noturno adágio.
E quem viverá nesse silêncio?
Só tu é que me poderá contar:

“Acreditará em seus dias com os olhos fechados.”


Gustavo Lacava,
28/02/2011

7 de fevereiro de 2011

Pós-tudo

Esse eu escrevi para o blog Escritos - Linguagem no Corpo, cuja proposta era uma prosa poética. Serviu como treino noite insone adentro. Pra quem ler, boa diversão com as palavras arranjadas.

"Tzinacan"


Há um Santo no jardim. Em sua fronte, ao centro, carrega o Universo, e é menor que uma cigarra. Dos seus pés descalços escorrem duas nascentes: a que vai para o Leste culmina num lago, onde animais de todas as espécies se alimentam (há peixes em abundância, mas não há competição): tudo é farto no lago e em torno dele; à Oeste, o rio turva-se e acelera sua velocidade, progredindo geometricamente, sob a razão de cinco. Logo, exige desafios para compreender sinuoso traço. Esfinges encontram esconderijo nesse labirinto de margens duras e rigorosas. Porém o corte na terra, desenhado caprichosamente pelo tempo – que não é mais do que o próprio rio – desvela um caminho entre os vales, repletos de pedras e flores cujas pétalas ainda não têm nome.

Sobre sua cabeça, um anel brilhante pende do éter azul e incógnito. Há quem pense ser essa aréola um conjunto de planetas e variados sóis, reduplicando as possibilidades e as dúvidas. Em verdade, pendem do Imensurável luzes multicores que conseguem dar novos temas às pastagens cor de oliva. Há o amarelo de Van Gogh e as luzes da Renascença, espelhados nos topos e entre as árvores do bosque. Parece que são essas ondas que regulam o clima, por ora quente e úmido.

Na mão esquerda carrega Ele um cetro adornado por pérolas escuras, como se não fosse um ser da terra, e sim do mar. Mas não há nada Nele que remeta às ondas, que são determinadas e rigorosas: essa sua contradição é fruto de uma paixão imensa por tudo aquilo que nasce e perece. Se Nele há repetição é só porque compreendeu a simetria matemática de existir – o Santo é demasiado humano. E na palma da mão direita duas chagas revelam seu mistério: mesmo os deuses são, ainda, temerosos e gostam de sentir assim. Para o Santo, simplesmente ser e estar, com todos os Verbos em-si.

Na íris desse irrevogável Santo vêem-se comandos e ordens parados que regulam o Fogo Primordial. Os signos usados para que cada ação mova-se em em círculos aparenta-se com o I Ching, embora suas combinações sejam infinitas. Cada lento tempo de olhar, entre fechar e abrir novamente os olhos, é uma existência que se instaura, independente Dele: há quem viva, há quem corra. Há sempre esquecimento. E nesse ínterim, pululam novas formas de Memória. O Santo reconhece ser isso o que os mais nobres da estirpe dos humanos chamam pelo nome de consciência. Não há desacordo no semblante do Santo.

Diante de tudo isso, que notou ser Sublime, o Santo diz sua única assertiva – como uma praga ou uma predileção. Fala antes de levantar-se e partir com os olhos cansados e as mãos dispostas a destruir todos os livros que tentarão contar de sua passagem por este jardim. “Há só uma história a se contar” – sua única doutrina, seu canto pela eternidade ecoado em terças, quintas e sétimas acalma o Horizonte, que já começava a ruir.