7 de fevereiro de 2011

Pós-tudo

Esse eu escrevi para o blog Escritos - Linguagem no Corpo, cuja proposta era uma prosa poética. Serviu como treino noite insone adentro. Pra quem ler, boa diversão com as palavras arranjadas.

"Tzinacan"


Há um Santo no jardim. Em sua fronte, ao centro, carrega o Universo, e é menor que uma cigarra. Dos seus pés descalços escorrem duas nascentes: a que vai para o Leste culmina num lago, onde animais de todas as espécies se alimentam (há peixes em abundância, mas não há competição): tudo é farto no lago e em torno dele; à Oeste, o rio turva-se e acelera sua velocidade, progredindo geometricamente, sob a razão de cinco. Logo, exige desafios para compreender sinuoso traço. Esfinges encontram esconderijo nesse labirinto de margens duras e rigorosas. Porém o corte na terra, desenhado caprichosamente pelo tempo – que não é mais do que o próprio rio – desvela um caminho entre os vales, repletos de pedras e flores cujas pétalas ainda não têm nome.

Sobre sua cabeça, um anel brilhante pende do éter azul e incógnito. Há quem pense ser essa aréola um conjunto de planetas e variados sóis, reduplicando as possibilidades e as dúvidas. Em verdade, pendem do Imensurável luzes multicores que conseguem dar novos temas às pastagens cor de oliva. Há o amarelo de Van Gogh e as luzes da Renascença, espelhados nos topos e entre as árvores do bosque. Parece que são essas ondas que regulam o clima, por ora quente e úmido.

Na mão esquerda carrega Ele um cetro adornado por pérolas escuras, como se não fosse um ser da terra, e sim do mar. Mas não há nada Nele que remeta às ondas, que são determinadas e rigorosas: essa sua contradição é fruto de uma paixão imensa por tudo aquilo que nasce e perece. Se Nele há repetição é só porque compreendeu a simetria matemática de existir – o Santo é demasiado humano. E na palma da mão direita duas chagas revelam seu mistério: mesmo os deuses são, ainda, temerosos e gostam de sentir assim. Para o Santo, simplesmente ser e estar, com todos os Verbos em-si.

Na íris desse irrevogável Santo vêem-se comandos e ordens parados que regulam o Fogo Primordial. Os signos usados para que cada ação mova-se em em círculos aparenta-se com o I Ching, embora suas combinações sejam infinitas. Cada lento tempo de olhar, entre fechar e abrir novamente os olhos, é uma existência que se instaura, independente Dele: há quem viva, há quem corra. Há sempre esquecimento. E nesse ínterim, pululam novas formas de Memória. O Santo reconhece ser isso o que os mais nobres da estirpe dos humanos chamam pelo nome de consciência. Não há desacordo no semblante do Santo.

Diante de tudo isso, que notou ser Sublime, o Santo diz sua única assertiva – como uma praga ou uma predileção. Fala antes de levantar-se e partir com os olhos cansados e as mãos dispostas a destruir todos os livros que tentarão contar de sua passagem por este jardim. “Há só uma história a se contar” – sua única doutrina, seu canto pela eternidade ecoado em terças, quintas e sétimas acalma o Horizonte, que já começava a ruir.

5 comentários:

sueliaduan disse...

Gustavo, meu querido, esperei tua postagem no "Escritos" até domingo, mas o pessoal (alguns) me cobraram nova tarefa.Como pensei que não iria postar mais, postei no finalzinho da tarde o novo exercício. LEIA LÁ, talvez se identifique mais com esse :o)
Vou voltar ler com calam teu post,.
bjão

sueliaduan disse...

ops com calma .rsrs

Anônimo disse...

O eco em terças, quintas e sétimas eram guitarrísticas, suponho...
Abraços, amigo poeta. Eu realmente piro nas suas letras!

Ana disse...

Aê Gustavo!
Que bonito, e confesso que quando li "prosa poética" fiquei morrendo de preguiça. É, ando numa frescura enorme.
No fim, eu gostei. E fiquei mais uma vez com uma impressão de no penúltimo parágrafo (e quando você escrevia poesia, eram nas penúltimas estrofes) a fluência se modifica um pouco. Parece que você toma consciência da escrita e expõe isso. Nada ruim, e eu também posso estar viajando, é só uma impressão. Sempre achei que fosse a filosofia passando pela tua cabeça, sei lá. Mas eita quanta bobagem, né. Beijos!

Natália disse...

Oi Gustavo,
Não sabia que você filosofafa de graça assim não. Li em voz alta, porque a beleza da junção das palavras iniciais me encantou. Adorei tuas descrições em especial esse trecho:"Cada lento tempo de olhar, entre fechar e abrir novamente os olhos, é uma existência que se instaura, independente Dele: há quem viva, há quem corra. Há sempre esquecimento. E nesse ínterim, pululam novas formas de Memória. O Santo reconhece ser isso o que os mais nobres da estirpe dos humanos chamam pelo nome de consciência. "

Valeu pela leitura de quem não dormiu passando a madruga tentando escrever.
Até mais na fac.

Natália